O uso de formas não comprovadas de terapia no tratamento do câncer é muito comum. No Brasil, a distribuição por pesquisadores a pacientes de um agente investigativo chamado fosfoetanolamina, levou a um escândalo científico amplamente divulgado. A fosfoetanolamina é um precursor de componentes da membrana celular, com alguns estudos pré-clínicos publicados sugerindo atividade citotóxica em células cancerígenas.
A disposição dos tribunais e dos legisladores para garantir o acesso a fosfoetanolamina, apesar da falta de dados clínicos e contra as recomendações de organizações científicas e médicas, ressalta os riscos que agentes não comprovados representam para as autoridades reguladoras, sistemas de saúde e pacientes.
A fosfoetanolamina foi desenvolvida pelo Instituto de Química da USP há 20 anos, prometendo a cura para diferentes tipos de câncer. Em teoria, a fosfoetanolamina sintética sinalizaria as células cancerosas e as faria voltar a funcionar normalmente, fazendo com que o câncer parasse de se desenvolver. Saiba tudo sobre essa pílula que está dando o que falar no meio médico.
Criação e imbróglio jurídico
O Brasil é um país em desenvolvimento onde uma parcela significativa da população não tem acesso a cuidados de saúde. Como outros países em desenvolvimento, o Brasil tem lutado desde a década de 1980 para construir seu sistema público de saúde, o SUS (Sistema Único de Saúde) e tem conseguido desenvolver políticas eficazes em certos campos da saúde pública, como o HIV/ AIDS.
Nesse cenário, o desenvolvimento completo de uma droga anticâncer brasileira, do laboratório ao uso clínico, seria uma história de sucesso incomum. Entretanto, o escândalo de uma pesquisa em andamento sobre uma substância experimental demonstra como a falta de experiência com os princípios da pesquisa clínica entre alguns médicos, pessoas jurídicas, mídia e pacientes pode ser perigosa para o sistema de saúde de um país e expõe pacientes a danos desconhecidos.
Em agosto de 2015, a mídia brasileira relatava a prisão de um ex-vendedor que fabricava e distribuía a fosfoetanolamina. Ele o obteve de um professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) e mais tarde foi ensinado como produzi-lo. De acordo com a lei brasileira, é crime distribuir substâncias com fins medicinais sem que a substância seja registrada pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
O professor em questão alegou ter participado de testes clínicos em um centro de câncer de boa reputação, embora o centro tenha negado isso. Nenhum dado clínico sobre esta substância foi publicado. O crescente número de pessoas que chegam à universidade atrás de tal medicamento acabou por atrair a atenção das autoridades universitárias, levando-as a impedir esta distribuição ilegal.
Após a interrupção da distribuição pela USP, muitos pacientes foram à justiça exigindo o fornecimento contínuo de fosfoetanolamina. Esse imbróglio judicial, com os tribunais se revezando para autorizar ou interromper a distribuição, levou à crescente pressão dos pacientes sobre os legisladores para agir. Primeiro o congresso aprovou através de votação uma lei que autorizava o uso da droga. Depois essa mesma lei foi anulada pelo Supremo Tribunal.
Em paralelo, estudos foram iniciados em hospitais públicos por uma força-tarefa designada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. A Anvisa, Organização Mundial de Saúde (OMS), associações médicas brasileiras, pesquisadores de oncologia clínica e oncologistas médicos de renome afirmaram a natureza experimental da fosfoetanolamina e a inadequação de seu uso clínico neste momento, bem como a ameaça representada pela ação legislativa sobre o assunto.
Confiar ou não confiar na fosfoetanolamina
A fosfoetanolamina é um importante bloco de construção dos lipídios que integram as membranas celulares da nossa estrutura física. A droga também atua como um sinal molecular que impulsiona diversos processos celulares. Embora alguns estudos sugiram que essa droga extermina células cancerígenas em células isoladas, não está totalmente claro como ela provoca essa resposta.
Para fundamentar uso de fosfoetanolamina em pessoas, seria preciso uma série de testes clínicos rigorosos com voluntários. Ainda assim, seriam necessários mais estudos pré-clínicos teriam que ser feitos, segundo o Ministério da Ciência e Tecnologia do Brasil.
Todo esse processo certamente vai levar anos para se chegar a uma conclusão concreta. Porém, enquanto isso, advogados representando pacientes com câncer asseguraram recorrer contra a decisão que proíbe a utilização da droga. Se essas apelações forem bem-sucedidas, é preocupante o a situação em que as pessoas não esperem até que todos os testes sejam finalizados, podendo levar a um abandono do tratamento usual em favor da fosfoetanolamina.
Os argumentos de que as pessoas com doenças terminais possuem o direito de procurar medicamentos experimentais, são uma vantagem significativa para os defensores da droga. Entretanto, para a superintendência das universidades, os reguladores de medicamentos e os pesquisadores de câncer, isso demonstra uma evidente desconsideração pelo princípio científico básico de que qualquer droga não deveria ser demonstrada como segura e eficaz antes de ser administrada a pacientes fora de um ensaio clínico.
Agora, do ponto de vista legal. Esta decisão é triste, porque abre um precedente realmente perigoso. O caso da fosfoetanolamina é particularmente alarmante, com tribunais aprovando o uso de uma substância que nunca foi adequadamente testada em seres humanos, e que portanto, não pode ser dito para promover ou preservar a saúde. Um precedente arriscado para a demanda judicial de qualquer forma de não tratamento comprovado.
Do ponto de vista dos pacientes é compreensível que exista muita aflição e um desejo em acreditar em uma cura milagrosa como essa. Mas as pessoas têm que entender que os testes existem para a segurança e que a ciência não é feita por histórias anedóticas. Ignorar todo o processo técnico é uma regressão.
Considerações finais
Uma parte dos estudos analisados sugere um possível potencial anticancerígeno da fosfoetanolamina. No entanto, as limitações dos estudos publicados devem ser consideradas. Nos artigos publicados, são identificados apenas os estudos pré-clínicos (em células ou em animais). Nenhum estudo clínico em humanos foi publicado na até hoje.
A falta de estudos mais complexos em humanos não permite uma análise mais aprofundada e qualitativa das reais implicações toxicológicas desse composto. Apesar de a fosfoetanolamina realmente ter propriedades anticarcinogênicas, não há evidências suficientes de que o medicamento não afetaria negativamente seus usuários. Assim, é certo afirmar que uma análise da implicação real de usar este composto como uma droga anticâncer ainda levará tempo.
Portanto, é necessário avaliar as implicações reais da fosfoetanolamina como um possível medicamento para uso em tratamentos contra o câncer. Mais estudos são necessários em uma escala mais ampla para afirmar a legítima capacidade anticarcinogênica deste composto.
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